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Assédio moral ascendente: quando a liderança se torna alvo

16/04/2025

Apesar de sua gravidade e de suas consequências diretas sobre a governança institucional, o assédio moral ascendente ainda é um tema subexplorado tanto na literatura acadêmica quanto na legislação trabalhista brasileira.

O assédio moral no ambiente de trabalho é um fenômeno amplamente reconhecido e discutido no âmbito das relações laborais, especialmente em sua manifestação tradicional — aquela exercida verticalmente por superiores hierárquicos contra seus subordinados. Entretanto, nas últimas décadas, novos arranjos organizacionais, caracterizados por maior horizontalidade, dinâmicas participativas e transformações nos papéis de liderança, têm propiciado o surgimento de outras formas de violência simbólica e relacional, entre elas o assédio moral ascendente.

Essa modalidade de assédio ocorre quando subordinados, de forma isolada ou coletiva, adotam condutas sistemáticas que visam fragilizar, deslegitimar ou sabotar a autoridade de seus gestores. Tais práticas podem incluir o descumprimento deliberado de ordens, disseminação de boatos, intimidações veladas, ironias públicas, isolamento, chantagens e outras atitudes que comprometem não apenas a eficácia da liderança, mas também a saúde mental dos profissionais envolvidos e a estabilidade da organização.

Apesar de sua gravidade e de suas consequências diretas sobre a governança institucional, o assédio moral ascendente ainda é um tema subexplorado tanto na literatura acadêmica quanto na legislação trabalhista brasileira. O silêncio organizacional e a dificuldade em reconhecer e comprovar esse tipo de prática contribuem para sua invisibilidade, reforçando a vulnerabilidade dos gestores diante de contextos hostis.

Diante desse panorama, o presente artigo tem como objetivo analisar criticamente o assédio moral ascendente, abordando seu conceito, suas causas estruturais, suas formas de manifestação e os impactos sobre a liderança e o ambiente organizacional. Com base em referenciais teóricos reconhecidos e na análise de casos emblemáticos muitos casos conhecidos no universo esportivo também traz a tona essa discussão e busca ampliar o debate acadêmico e propor medidas institucionais que contribuam para a prevenção e o enfrentamento dessa forma de violência psicológica no trabalho. 

O assédio moral ascendente é caracterizado por condutas reiteradas de desrespeito, boicote e deslegitimação da autoridade de um superior hierárquico por parte de seus subordinados. Tal prática ocorre quando empregados, individualmente ou em grupo, passam a adotar comportamentos hostis que comprometem a atuação do gestor, fragilizando sua liderança e, em muitos casos, culminando em seu afastamento. Essas condutas podem abranger desde a resistência sistemática ao cumprimento de ordens, o descumprimento das conhecidas OS (ordem de serviço) a propagação de boatos e comentários irônicos, até intimidações diretas, isolamento deliberado e chantagens veladas.

Conforme destaca Hirigoyen (2013), uma das principais estudiosas do fenômeno da violência psicológica no trabalho, o assédio moral ascendente representa uma estratégia consciente de desqualificação da liderança, resultando na criação de um ambiente de constante tensão e desconfiança. A autora ressalta:

No assédio ascendente, os subordinados utilizam estratégias para desqualificar e enfraquecer a liderança de um gestor, criando um ambiente de desconfiança e dificultando sua permanência na função (HIRIGOYEN, 2013, p. 89).

A partir dessa concepção, compreende-se que o assédio ascendente não se limita à simples divergência de opiniões ou insatisfação pontual, mas se manifesta como uma prática sistemática de subversão da autoridade, com sérias implicações para a saúde psíquica do gestor e a estabilidade organizacional.

Entre os fatores que costumam desencadear esse tipo de assédio, destacam-se a resistência às mudanças propostas por um novo modelo de gestão, a insatisfação com decisões administrativas, disputas internas por poder, bem como preconceitos de idade, gênero ou experiência profissional do líder.

O Tribunal Superior do Trabalho (TST), por meio da Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral – Pare e Repare por um ambiente de trabalho + positivo, esclarece que:

Assédio praticado por subordinado ou grupo de subordinados contra o chefe. Consiste em causar constrangimento ao superior hierárquico por interesses diversos. Ações ou omissões para ‘boicotar’ um novo gestor, indiretas frequentes diante dos colegas e até chantagem visando a uma promoção são exemplos de assédio moral desse tipo (TST, 2015, p. 17).

A cartilha ainda enfatiza que tais práticas muitas vezes decorrem de interesses pessoais, como a tentativa de forçar promoções, enfraquecer estrategicamente a gestão vigente ou até mesmo desestabilizar o ambiente organizacional para obtenção de vantagens individuais ou coletivas.

A ocorrência do assédio moral ascendente está frequentemente relacionada a fatores estruturais, organizacionais e interpessoais que favorecem a eclosão de condutas hostis por parte dos subordinados. Dentre as causas mais recorrentes, destacam-se:

Mudanças na liderança: A chegada de um novo gestor ao ambiente organizacional pode gerar resistência por parte da equipe, sobretudo quando há imposição de novas diretrizes, mudanças de cultura, ou revisão de processos internos. Subordinados, sentindo-se ameaçados ou descontentes, podem reagir com atitudes desestabilizadoras.

Insegurança e medo de mudanças: A percepção de que transformações propostas pelo novo gestor podem afetar benefícios, posições de privilégio ou mesmo expor desempenhos insatisfatórios, tende a provocar reações defensivas, alimentando o ambiente propício ao assédio.

Falta de clareza nas relações de autoridade: Em organizações com estruturas hierárquicas mal definidas ou onde não há reforço institucional à autoridade legítima do gestor, é comum o surgimento de disputas de poder e atitudes de desrespeito, que podem evoluir para o assédio moral.

Relações interpessoais conflituosas: Problemas de comunicação, ressentimentos acumulados, rivalidades pessoais e conflitos não mediados são fatores que contribuem para a hostilidade dirigida à liderança. Tais relações deterioradas afetam diretamente a autoridade do gestor, prejudicando o clima organizacional.

Como destaca Dejours (2006), a fragilização das relações de autoridade e o sofrimento psíquico que decorre da perda de reconhecimento são elementos centrais na gênese do assédio no ambiente de trabalho. Quando o líder não encontra respaldo institucional nem possui mecanismos adequados para lidar com conflitos, torna-se vulnerável às ações abusivas dos subordinados.

O assédio moral ascendente acarreta efeitos prejudiciais não apenas sobre o indivíduo que exerce a função de liderança, mas compromete de forma estrutural o funcionamento organizacional como um todo. Por se tratar de uma prática que mina a autoridade legítima e afeta o equilíbrio das relações hierárquicas, suas consequências tendem a ser múltiplas e profundas. Entre as principais, destacam-se:

  • Desestabilização da liderança: A autoridade do gestor é sistematicamente enfraquecida, dificultando a tomada de decisões, a mediação de conflitos internos e a implementação de diretrizes estratégicas. A perda de legitimidade do líder compromete a governança e a eficácia organizacional.
  • Ambiente de trabalho hostil: O clima organizacional tende à deterioração, com aumento da desconfiança, da comunicação disfuncional e da fragmentação das relações interpessoais. Isso resulta na redução da produtividade, da cooperação entre equipes e no comprometimento dos resultados institucionais.
  • Impactos sobre a saúde mental: O gestor que é alvo de assédio ascendente frequentemente pode desenvolver sintomas de sofrimento psíquico, tais como estresse crônico, ansiedade, depressão e sentimentos de isolamento e impotência. Tais efeitos podem levar a afastamentos por licença médica, pedidos de exoneração ou até processos de judicialização da relação de trabalho.

De acordo com Dejours (2006), as patologias do trabalho estão intrinsecamente ligadas à desvalorização simbólica do sujeito no espaço organizacional. Quando a liderança é desqualificada e exposta a um ambiente psicologicamente inseguro, rompe-se o pacto de confiança necessário à saúde mental no trabalho.

A prevenção e o enfrentamento do assédio moral ascendente demandam uma abordagem institucional ampla, que reconheça a complexidade das relações hierárquicas e promova um ambiente organizacional equilibrado, pautado pelo respeito mútuo, pela ética e pela transparência. Para tanto, recomenda-se a adoção de medidas integradas que envolvam tanto aspectos estruturais quanto comportamentais.

Promoção de uma cultura organizacional saudável: É fundamental estabelecer uma cultura organizacional que valorize o diálogo, a cooperação e a responsabilidade coletiva. Códigos de conduta e de ética devem estar claros e acessíveis, reforçando os limites do comportamento aceitável e sinalizando as consequências de condutas abusivas.

Capacitação e sensibilização: Investir na formação contínua de líderes e equipes, por meio de programas de educação corporativa, contribui para o desenvolvimento de competências emocionais, comunicacionais e gerenciais. Tais ações são essenciais para que todos compreendam os impactos do assédio e saibam como preveni-lo.

Criação de canais seguros de escuta e denúncia: A instituição deve oferecer meios confidenciais e imparciais para que gestores possam relatar situações de assédio sem receio de retaliações. Ouvidorias internas, comitês de ética e apoio psicossocial são mecanismos eficazes para acolhimento e apuração das denúncias.

Fortalecimento da autoridade institucional da liderança: Garantir que o gestor possua respaldo das instâncias superiores, bem como autonomia para exercer sua função, é uma medida crucial. A liderança deve ser legitimada pela estrutura organizacional, de forma que atitudes desestabilizadoras por parte dos subordinados não sejam toleradas ou normalizadas.

Nesse sentido, Marras (2011) enfatiza que o fortalecimento da liderança passa não apenas pela competência técnica do gestor, mas pelo reconhecimento institucional de sua autoridade como figura central na mediação de conflitos e na condução dos objetivos organizacionais. 

Para ilustrar a complexidade e os impactos do assédio moral ascendente nas relações de trabalho, o universo do futebol profissional, os quais evidenciam como a autoridade de líderes como técnicos de futebol ou sua equipe técnica pode ser fragilizada por pressões exercidas por atletas levando à perda de comando e, em casos extremos, à demissão do mesmo. E aqui poderia citar inúmeros de casos recentes.

O assédio moral ascendente, embora ainda pouco explorado na literatura acadêmica e nas práticas organizacionais, revela-se como um fenômeno de crescente relevância no contexto das relações de trabalho contemporâneas. Ao inverter a lógica tradicional do assédio — na qual o poder é exercido de forma abusiva de cima para baixo — o assédio ascendente lança luz sobre as complexidades da autoridade gerencial e sobre os riscos da deslegitimação da liderança por parte de subordinados.

A análise teórica e os casos empíricos apresentados ao longo deste artigo demonstram que o assédio moral ascendente compromete não apenas o bem-estar psicológico dos gestores, mas também a estabilidade institucional, a fluidez da comunicação e a capacidade estratégica das organizações. Situações em que a liderança é sistematicamente minada geram um ambiente de trabalho disfuncional, marcado por instabilidade, conflitos latentes, sabotagens veladas e retração da autoridade formal.

Diante desse cenário, torna-se urgente o reconhecimento institucional do assédio moral ascendente como um problema organizacional legítimo, que exige a construção de mecanismos preventivos e de enfrentamentos robustos. Isso inclui o fortalecimento da cultura institucional baseada no respeito mútuo, na ética e na valorização da autoridade legítima; a implementação de programas permanentes de formação e sensibilização; a criação de canais seguros de escuta e denúncia para líderes assediados; e o investimento em mediação e gestão proativa de conflitos.

Ademais, é imprescindível que a alta gestão assuma o compromisso com a proteção da autoridade técnica e funcional dos gestores, assegurando que esses profissionais possam exercer seu papel com autonomia e respaldo, sem receios de retaliação por pressões informais ou por disputas de poder internas.

Por fim, é preciso compreender que a liderança contemporânea exige mais do que comando: requer legitimidade, confiança e reciprocidade. Combater o assédio moral ascendente é, portanto, um passo essencial para a consolidação de ambientes organizacionais saudáveis, sustentáveis e alinhados a princípios de justiça, dignidade e respeito nas relações de trabalho.




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Eneias Viegas da Silva

Eneias Viegas da Silva é secretário-executivo de Gestão de Pessoas do Tribunal de Contas de Mato Grosso (TCE-MT), administrador de empresas, MBA em Gestão de Pessoas pela FGV, MBA em Administração Pública e Controle Externo pela FGV, MBA em Gestão Estratégica por Resultado pela UFMT, Mestre em Função Social do Direito e Doutorando em Função Social do Direito.