Principalmente após o início da pandemia da Covid-19, é possível encontrar famílias inteiras vivendo nas praças
Refletindo sobre os 305 anos de Cuiabá deparei-me com a habitual e inquietante situação de nos últimos 30 anos, pelo menos, mesmo diante de rigorosas modificações na malha urbana, as múltiplas transformações que ocorreram na sua organização social com rigorosos desafios à gestão pública, em todos os campos, ainda persistir na população uma sensação de privação de saúde e infraestrutura.
Refleti também sobre novos problemas e um, em especial, chamou mais a atenção, por ter sido pauta constante nas notícias dos últimos meses, seja pelo aumento do interesse da sociedade cuiabana que começa a reagir com atividades isoladas, mas ativas, ou pela reclamação dessa mesma sociedade pela visível e significativa multiplicação de pessoas em situação de rua, chegando agora a bairros mais residenciais.
Sem sombra de dúvidas trata-se, o fenômeno de morar nas ruas, de problema que repercute sobremaneira em nossa sociedade, mas que ao contrário dos que possuem pressão social e política para uma agenda continuada de soluções, esse “novo fenômeno” que substituiu o de “crianças de rua”, não consegue criar uma resposta para reagir na neutralização desse problema que, dia após dia, de forma exponencial, vê-se agravar em nossa capital, como em Mato Grosso, o que se considera a maior das desproteções sociais: viver nas e das ruas!
Principalmente após o início da pandemia da Covid-19, é possível encontrar famílias inteiras vivendo nas praças, avenidas ou embaixo de viadutos. Em Mato Grosso, 58% das pessoas que ingressaram em 2022 no Cadastro Único após o aumento dessa população devido ao período pandêmico, ainda persistiam em fevereiro de 2024.
De acordo com dados do Cadastro Único de dezembro de 2023, em nosso Estado, pouco mais de 3 mil pessoas nessas condições socioeconômicas são socioassistidas, sendo 41% delas em Cuiabá.
O perfil pessoal dessas pessoas é muito semelhante. Em geral possuem idade entre 25 e 34 anos, em 92% predomina o sexo masculino, 60% possuem escolarização até o ensino fundamental incompleto e apenas 25% trabalharam nos últimos 12 meses ao ingresso no Cadastro Único, com a novidade de aparecer esse perfil social com rendimentos do trabalho superior a linha brasileira de proteção social, meio salário-mínimo, o que é muito incomum a esse tipo de desproteção.
Esse fenômeno que no seu conjunto é muito comum nos municípios com grande oferta de trabalho ou serviços públicos em grande escala, concentrando 94% em 22 municípios com mais de 30 mil habitantes e que retêm 75% do emprego formal do setor privado, não recebem desses territórios qualquer marco normativo delineando ações que ampliem o alcance da proteção social a esses cidadãos de direitos, o que aparentemente faz recrudescer a sua permanência na situação de rua, mesmo diante das hostilidades que as ruas oferecem.
Esse cenário atraiu a atenção da Suprema Corte da justiça brasileira e a levou a intervir e impor ao poder público em âmbito federativo atuar de maneira mais efetiva e assegurar ao cidadão o constitucional direito de assistência aos desamparados.
Por unanimidade, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, o Plenário determinou aos estados, Distrito Federal e municípios a observância imediata das diretrizes da Política Nacional para População em Situação de Rua, bem como estabeleceu o prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para efetiva implementação da política nacional.
A referida decisão expõe a dificuldade do Estado em tirar do papel e concretizar os seus objetivos fundamentais como República, insculpidos no art. 3º da Constituição Federal de 1988, em especial o de erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; e construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Há um ano, o Estado de Mato Grosso publicou a Lei n.º 12.083/2023, que institui a Política Estadual para a População de Rua. A norma possui dentre seus princípios, o respeito à dignidade da pessoa humana; o direito à convivência familiar e comunitária; a valorização e o respeito à vida e à cidadania; o atendimento humanizado e universalizado; o respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência; a não discriminação de qualquer natureza no acesso a bens e serviços públicos, fortalecendo assim, uma política nacional de proteção às pessoas em situação de rua com o enfoque no “trabalho digno” e na “cidadania”.
Com relação aos objetivos da política desenhada para Mato Grosso, a legislação idealiza cenários exemplares. Dentre eles, me chamou mais atenção a articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde e o amplo acesso à população de rua aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde. Isso me permitiu refletir se o Estado tem cuidado da saúde da população de rua em sua integralidade, oferecendo serviços de atenção primária à saúde. Me parece que não.
Confesso que estarreci nessas distrações da mente. Voltei ao passado e recordei quando os problemas de saúde eram atenuados com poucas ações e quase não havia atendimentos muito especializados. Não tive como não comparar. Vendo cada vez mais a sociedade recorrer a paliativos para corrigir problemas estruturais, válidos, socorrem e atenuam sofrimentos.
Para atender ao cenário ideal e atingir os objetivos propostos na legislação entendo que a estruturação da política por meio de ações integradas e estruturantes de saúde e assistência é a melhor estratégia do Poder Executivo para garantir que a população em situação de rua supere a situação e tenha seus direitos fundamentais sociais atendidos.
O desafio agora é que os gestores e demais atores envolvidos reconheçam a complexidade do problema social, adotem a Política para a População de Rua como uma política de governo, e a partir de um diagnóstico e de evidências, promovam o planejamento e a adequada destinação dos recursos públicos.
É com esse olhar atento e sensível às causas das pessoas em situação de vulnerabilidade social que os Tribunais de Contas podem atuar, auxiliando os gestores e demais atores envolvidos na estruturação das políticas públicas qualificadas e que atendam o quadro social posto em Mato Grosso.
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Guilherme Antonio Maluf é graduado em Medicina pela Universidade de Santo Amaro (1986). Fez residência médica em Cirurgia-geral pela Universidade de São Paulo (USP) (1988-1990). É especialista em Cirurgia-geral e Endoscopia Digestiva pela USP (1991). Pós-graduado em Gerente de Cidades pela FAAP-SP (2013). Mestre em Administração Pública pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Foi vereador por Cuiabá (2005-2006). Deputado Estadual por quatro mandatos (2007-2010/ 2011-2014/ 2015-2018/ 2019-2022). Secretário de Saúde de Cuiabá (2007-2008). Presidente da Assembleia Legislativa (2015-2017). Primeiro Secretário da Assembleia Legislativa (2017-2019). Governador Interino de Mato Grosso (abril 2016 - cinco dias). Tomou posse como Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso - TCE-MT em 1/3/2019. Atualmente, exerce o cargo de vice-presidente do TCE-MT e de presidente da Comissão Permanente de Saúde, Previdência e Assistência Social do TCE-MT.